Azar dos fatos
MEU MUY AMIGO Marcelo Leite bem notou uma vez que não sabia por que ainda perdia seu tempo lendo coisas como Veja e Exame. Hoje eu tive a infelicidade de me deparar com a versão que a "Indispensável" (sic) deu ao conflito entre índios, índios e fazendeiros em Roraima por conta da homologação da área Raposa/Serra do Sol. Não sei por que razão, me dei o trabalho de ler. E também não sei por que me dou o trabalho de contestar a "tese" da reportagem aqui, ponto a ponto. Porque contestar a Veja é mais ou menos como debater com criacionistas. É um exercício completamente inútil, mas irresistível devido à raiva despertada pela desfaçatez com que ambos contam mentiras e distorcem fatos.
Então, seguem meus comentários à matéria do otherwise very reasonable Otávio Cabral, um jornalista que entende tudo de Congresso, mas que pelo visto nunca tinha viajado antes à Amazônia.
"Em vez de transformar a região num celeiro de grãos e gado, sucessivos governos passaram a dar maio ênfase à preservação da floresta, à criação de santuários ecológicos e à manutenção dos índios no estágio pré-histórico (...)"
Não sei de que país nem de que governos a Veja está falando. Porque tudo o que sucessivos governos do Brasil têm feito é justamente tentar transformar a Amazônia num celeiro de grãos e gado. É justamente ESSE o problema da Amazônia. A soja de Mato Grosso e Rondônia e o boi de São Félix do Xingu estão aí para provar. O Pará é o maior rebanho do país hoje. Às expensas da floresta. A premissa da afirmação é falaciosa. Ou um Sergipe desmatado por ano é reflexo de políticas preservacionistas?
"Em Rondônia e no Pará o progresso ainda conseguiu manter abertas algumas clareiras (...)"
O cara chama 16% de desmatamento num e 25% de desmatamento noutro "clareiras"? À puta que pariu. Vá perguntar ao pé-rachado de Medicilândia, nos cafundós do Pará, que "progresso" é esse, como isso se refletiu no IDH dos dois Estados. Por outro lado, a elite ganadeira e o Jáder Barbalho definitivamente não têm do que reclamar.
"Os brasileiros e seus descendentes que acreditaram na pregação dos militares estão agora em Roraima perdidos na contramão da história, insistindo em vão em ser cidadãos produtivos, integrados à economia moderna, quanso tudo à sua volta -- governo, igrejas e ambientalistas -- conspira para devolver a mata a seu estado prístino"
Desde quando uma monocultura num solo paupérrimo pode ser chamada de "economia moderna"? Tão moderna quanto o ciclo da cana e o do café.
"O modo de vida primitivo (sic) dos índios seria em si um fator de proteção para o meio ambiente. Pode até ser. Não é o que mostra a história recente de outras reservas (...)"
Ah, não? A Veja se esqueceu de olhar, ou preferiu não ver, os mapas mais recentes de ocupação da Amazônia do Imazon, que mostram que áreas indígenas têm feito um papel surpreendentemente bom de proteger a floresta de saques desse "setor produtivo" que tanto recebe loas da revista (e que, lá na minha terra, a gente chama de "grileiro"). Também ignorou estudos na mesma linha do Instituto Socioambiental e da ONG americana Forest Trends. Aqui, a Veja comete o que Carl Sagan chama de supressão de evidências, a famosa síndrome de Ricúpero.
"Lula assinou o atestado da morte econômica de Roraima, já que na reserva se concentra quase toda a produção de arroz, que responde por nada menos que 11% do PIB do Estado"
Como é que um editor deixa passar uma conta malfeita dessas? Primeiro, 11% de qualquer coisa não pode ser chamado de "maior parte". Logo, 11% do PIB não pode ser chamado de "morte econômica", pode? Seria a primeira pergunta a fazer ao repórter. Roraima ocupa o 19º lugar no ranking nacional de PIB per capita, segundo dados da Secretaria de Planejamento do Estado. Todo o setor primário responde por 18% do PIB. O setor energético, 21%. Construção civil, 16%. Sabe do que Roraima vive? Do Fundo de Participação dos Estados, ou seja, de subsídio da Federação. Nada menos que 52,3% do PIB vêm do FPE. Ou seja, mandar embora o Estado, como sugere a Veja, seria, isso sim, a sentença de morte de Roraima.
"O governador exagera quando fala em apenas 10%, mas isso não invalida seu protesto: restam 17% de Roraima para uso da agricultura. Isso mostra que, com o tempo, talvez Roraima passe por uma inversão histórica: os índios vão se expandindo, e os brancos (...) acanarão reduzidos a um naco de terra. Será, assim, uma espécie de reserva de civilização em um Estado indígena"
Ufa! Por pouco ele não disse "reserva de civilização em meio à barbárie"! Não vou comentar o crime antropológico nem a carga de preconceito que permeiam a matéria. Dou o desconto para autor e editor, meninos de cidade grande. Vamos nos ater aos dados. Aqui, a Veja comete a falácia lomborguiana: manipular números absolutos. 17% só, né, coitadinhos? Aos números: Roraima tem 225 mil km2. 17% disso são 38 mil km2. A Bélgica, país que produz muito mais e muito melhores produtos agrícolas que Roraima, tem 30 mil km2 DE ÁREA TOTAL. Ou seja, a Veja e os barões do arroz de Roraima (tudo gente da mais fina estirpe, da turma de Romero Jucá e Neudo Campos) choram porque a oligarquia local vai ter "só" 1,3 Bélgica para plantar o arroz que responde por 11% do PIB.
Chega. Acho que já deixei meu ponto claro sobre a matéria da Veja aqui. Isso é o que eu chamo de jornalismo de princípios. Ou, como disse uma vez um jornalista da Veja, "se os fatos não batem com a nossa versão, azar dos fatos".
Então, seguem meus comentários à matéria do otherwise very reasonable Otávio Cabral, um jornalista que entende tudo de Congresso, mas que pelo visto nunca tinha viajado antes à Amazônia.
"Em vez de transformar a região num celeiro de grãos e gado, sucessivos governos passaram a dar maio ênfase à preservação da floresta, à criação de santuários ecológicos e à manutenção dos índios no estágio pré-histórico (...)"
Não sei de que país nem de que governos a Veja está falando. Porque tudo o que sucessivos governos do Brasil têm feito é justamente tentar transformar a Amazônia num celeiro de grãos e gado. É justamente ESSE o problema da Amazônia. A soja de Mato Grosso e Rondônia e o boi de São Félix do Xingu estão aí para provar. O Pará é o maior rebanho do país hoje. Às expensas da floresta. A premissa da afirmação é falaciosa. Ou um Sergipe desmatado por ano é reflexo de políticas preservacionistas?
"Em Rondônia e no Pará o progresso ainda conseguiu manter abertas algumas clareiras (...)"
O cara chama 16% de desmatamento num e 25% de desmatamento noutro "clareiras"? À puta que pariu. Vá perguntar ao pé-rachado de Medicilândia, nos cafundós do Pará, que "progresso" é esse, como isso se refletiu no IDH dos dois Estados. Por outro lado, a elite ganadeira e o Jáder Barbalho definitivamente não têm do que reclamar.
"Os brasileiros e seus descendentes que acreditaram na pregação dos militares estão agora em Roraima perdidos na contramão da história, insistindo em vão em ser cidadãos produtivos, integrados à economia moderna, quanso tudo à sua volta -- governo, igrejas e ambientalistas -- conspira para devolver a mata a seu estado prístino"
Desde quando uma monocultura num solo paupérrimo pode ser chamada de "economia moderna"? Tão moderna quanto o ciclo da cana e o do café.
"O modo de vida primitivo (sic) dos índios seria em si um fator de proteção para o meio ambiente. Pode até ser. Não é o que mostra a história recente de outras reservas (...)"
Ah, não? A Veja se esqueceu de olhar, ou preferiu não ver, os mapas mais recentes de ocupação da Amazônia do Imazon, que mostram que áreas indígenas têm feito um papel surpreendentemente bom de proteger a floresta de saques desse "setor produtivo" que tanto recebe loas da revista (e que, lá na minha terra, a gente chama de "grileiro"). Também ignorou estudos na mesma linha do Instituto Socioambiental e da ONG americana Forest Trends. Aqui, a Veja comete o que Carl Sagan chama de supressão de evidências, a famosa síndrome de Ricúpero.
"Lula assinou o atestado da morte econômica de Roraima, já que na reserva se concentra quase toda a produção de arroz, que responde por nada menos que 11% do PIB do Estado"
Como é que um editor deixa passar uma conta malfeita dessas? Primeiro, 11% de qualquer coisa não pode ser chamado de "maior parte". Logo, 11% do PIB não pode ser chamado de "morte econômica", pode? Seria a primeira pergunta a fazer ao repórter. Roraima ocupa o 19º lugar no ranking nacional de PIB per capita, segundo dados da Secretaria de Planejamento do Estado. Todo o setor primário responde por 18% do PIB. O setor energético, 21%. Construção civil, 16%. Sabe do que Roraima vive? Do Fundo de Participação dos Estados, ou seja, de subsídio da Federação. Nada menos que 52,3% do PIB vêm do FPE. Ou seja, mandar embora o Estado, como sugere a Veja, seria, isso sim, a sentença de morte de Roraima.
"O governador exagera quando fala em apenas 10%, mas isso não invalida seu protesto: restam 17% de Roraima para uso da agricultura. Isso mostra que, com o tempo, talvez Roraima passe por uma inversão histórica: os índios vão se expandindo, e os brancos (...) acanarão reduzidos a um naco de terra. Será, assim, uma espécie de reserva de civilização em um Estado indígena"
Ufa! Por pouco ele não disse "reserva de civilização em meio à barbárie"! Não vou comentar o crime antropológico nem a carga de preconceito que permeiam a matéria. Dou o desconto para autor e editor, meninos de cidade grande. Vamos nos ater aos dados. Aqui, a Veja comete a falácia lomborguiana: manipular números absolutos. 17% só, né, coitadinhos? Aos números: Roraima tem 225 mil km2. 17% disso são 38 mil km2. A Bélgica, país que produz muito mais e muito melhores produtos agrícolas que Roraima, tem 30 mil km2 DE ÁREA TOTAL. Ou seja, a Veja e os barões do arroz de Roraima (tudo gente da mais fina estirpe, da turma de Romero Jucá e Neudo Campos) choram porque a oligarquia local vai ter "só" 1,3 Bélgica para plantar o arroz que responde por 11% do PIB.
Chega. Acho que já deixei meu ponto claro sobre a matéria da Veja aqui. Isso é o que eu chamo de jornalismo de princípios. Ou, como disse uma vez um jornalista da Veja, "se os fatos não batem com a nossa versão, azar dos fatos".
4 Comments:
VEJA o que devemos fazer com nossos agricultores segundo o "Dicionário de Pensamentos Paralisantes" publicado na revista alguns meses atrás:
"A idéia: "O Brasil jamais será um país desenvolvido, com justiça social, se não fizer uma reforma agrária."
Por que é paralisante: Isso podia ter alguma dose de verdade no início do século XX, quando a economia se baseava na agricultura e a população brasileira era predominantemente rural. Hoje, com uma economia de forte perfil industrial, uma produção agrícola que é fruto de um intenso processo de mecanização e mais de 85% dos cidadãos vivendo em cidades, essa é uma idéia absolutamente fora do lugar. O que o país precisa para desenvolver-se e promover a justiça social é de mais educação e empregos dignos. Por que condenar um sem-terra a viver no campo se, com um trabalho na cidade, ele pode ganhar mais com uma rotina menos estafante, além de estar mais próximo de escolas para os filhos e hospitais para a família? Distribuir terra é mais caro e menos efetivo, do ponto de vista do desenvolvimento da nação, do que garantir uma boa instrução escolar a todos e proporcionar crédito para a criação e ampliação de pequenos negócios. Além disso, há cada vez menos terras a ser distribuídas no Brasil. A maior parte delas está nas mãos da agroindústria, que exporta, gera divisas para o país e proporciona alimentos de melhor qualidade e mais baratos para a população."
A revista está certa. Vamos acabar com o PDS da Irmã Dorothy e mudar todos os agricultores de lá para os apartamentos dos jornalistas da Revista na cidade grande. Depois vamos soltar os caras que mataram e mandaram matá-la e entregar a floresta à eles (afinal eles são os representantes do agronegócio). Com certeza a Amazônia estará melhor sem uma reforma agrária.
VEJA que a própria revista se contradiz. No Dicionário Paralisante, diz que isso de agricultura é bobagem, que o Brasil é uma potência industrial. Na matéria sobre Roraima, diz que é preciso tirar terras dos índios e distribuí-las aos agricultores. De constante, só o repúdio por princípio a qualquer coisa que tenha cheiro de "pensamento de esquerda" -- o que pessoas com idéias antigas, como eu, chamariam de "justiça social".
E daí que uma área correspondente a Sergipe é desmatada por ano na Amazônia? Você fala como se Sergipe fosse um estado significativo, tanto em área quanto em influência. Veja bem: se fosse um São Paulo por ano, a situação talvez mudasse de figura...
Você é um débil mental. E provavelmente nunca foi a Sergipe. Nem à Europa. O que "influência" tem a ver com isso?
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