Estado de Merda
Como já disse num post anterior, é possível, em tese, tentar levá-lo na esportiva. Abra, recite o mantra "é só uma ficção de privada" três vezes e comece. Começa bem, na verdade, seguindo a receita infalível da ficção de privada americana: sangue, sexo e suspense. Mas, poucas páginas depois, Chrichton comeca a SE levar a sério e a desfiar seu extenso rosário cético quanto à ameaça do aquecimento global. Você pensa, "não há de ser nada". Quer continuar a ler, está envolvido pela trama. Mas eis que surgem as notas de rodapé. As malditas notas de rodapé. "Como é que pode ser verdade uma porra dessas?", você se pergunta. E começa a enxergar o catatau de mais de 600 páginas como uma reserva vital -- para quando acabar aquele rolo de papel Neve.
Fala sério. Referências! "Nature, volume tal, ano tal". "Science, volume tal, ano tal". Papers de climatologia e afins. Intromissões irritantes do mundo real numa obra de ficção. Que para mim soam mais ou menos como a campainha que toca no meio de um amasso. Eis que os heróis da trama estão lá, passando perigos mil na Antártida, enfrentando os ecoterroristas que, para garantir financiamento para suas ONGs, criam icebergs gigantes e tempestades terríveis. No meio da ação, pausa para uma nota de rodapé que explica que o gelo na Antártida está aumentando, não diminuindo etc. Depois, os nada estéticos gráficos de temperatura (meus colegas jornalistas dizem que se colocarem um gráfico desses no jornal eles são demitidos no dia seguinte; não sei como Crichton conseguiu se safar). E as pregações intermináveis sobre como nada é comprovado, como nada disso é ciência etc.
Não quero aqui imitar Chrichton e discutir ponto a ponto suas misconcepções sobre ciência e ambiente. O climatologista Gavin Schmidt já fez isso por mim, num post maravilhosamente esclarecedor de dezembro do ano passado no blógue Real Climate. Só apontar que eu sei quem são os seus ideólogos, as pessoas que efetivamente falam com a boca do autor em Estado de Medo. É uma galera medonha.
O primeiro é Bjorn Lomborg, o estatístico dinamarquês que publicou o célebre O Ambientalista Cético, aquele livro com 1.900 notas de rodapé (eu contei) que essencialmente diz que mudança climática é uma bobagem, o planeta vai bem obrigado e em vez de gastar dinheiro com o combate ao non-issue do efeito estufa, os países industriais podiam aplicar essa mesma grana no Terceiro Mundo ou algo assim. Só faltou converter a cifra em casas populares. Crichton herdou de Lomborg a paixão por notas re rodapé, uma meia-dúzia de referências e a desonestidade intelectual (para quem não se lembra, o livro de Lomborg foi condenado na Dinamarca por desonestidade intelectual). E cometeu, com o sinal trocado, aquilo que Lomborg classifica de "ladainha" do fim do mundo dos ambientalistas.
O segundo é Dick Lindzen, o meteorologista gordão barbado de suspensórios do MIT que Crichton transformou no professor Kenner, o grande herói de sua trama (Sure enough, Kenner aparece como um tipo atlético, aplinista e meio milico. Em favor de Lindzen, diga-se que ele é um intelectual antimilitarista.) Dick é o cético número 1 do efeito estufa. Acusa o IPCC de ser um órgão político e ter forjado o sumário executivo de seu segundo relatório (o que Crichton faz, sem no entanto dizer nada sobre o terceiro, virtualmente consensual entre os mil cientistas do painel). Compara o ambientalismo à eugenia (o que Crichton também faz, sem ao menos dar o crédito da idéia a Lindzen). Diz que a maioria das geleiras do mundo está aumentando (o que Crichton faz, negligenciando que as geleiras continentais e o gelo marinho do Ártico estão derretendo). E bate na tecla de que os cientistas não entendem o comportamento do vapor d'água, talvez o principal gás de efeito estufa (aqui Crichton vai além de seu mestre e insiste no chamado "efeito íris", tese de Lindzen segundo a qual a atmosfera compensa o aquecimento formando nuvens que por sua vez aumentarão o albedo e diminuirão a temperatura; Lindzen desistiu dessa idéia porque seus experimentos nunca deram o resultado que ele esperava). Há frases inteiras no livro que eu ouvi da boca do próprio Dick, como a história da eugenia e a acusação: "antes eram todos só meteorologistas, e a atenção em torno do aquecimento global de repente transformou todo mundo em cientista climático".
Bleargh.
Então nada, nadinha vale a pena no livro? Bem, para quem gosta, há desfiles de mulheres deslumbrantes, incríveis vôos de jatinho executivo que dão a volta ao mundo em uma semana, canibais, terroristas. Mas aí você pensa: não é o caso simplesmente de ir até a locadora mais próxima e alugar uma bobagem hollywoodiana qualquer em vez de amargar 600 páginas de Crichton? Escolha. Só não diga que eu não avisei.